2010/01/20

a rotina do francisco e do pedro (2)

A Coordenação Nacional para a Infecção VIH/sida tem uma nova campanha de comunicação a que já nos referimos aqui, na qual se evidenciam dois filmes nos quais "pela primeira vez em Portugal representam-se relações de homens que têm sexo com homens". Ao longo de 27 anos "todas as campanhas de prevenção da infecção em Portugal representaram relações heterossexuais, quer fossem relações ocasionais ou estáveis". Nos últimos anos, "a promoção da utilização consistente do preservativo em relações estáveis tem sido, aliás, uma mensagem frequente", como na "campanha televisiva exibida em Junho de 2008 «Os anjos também têm sexo» sobre o risco de infecção em casais heterossexuais com relações estáveis". Vamos então rever os filmes de ambas as campanhas da Coordenação Nacional para a Infecção VIH/sida, acrescentando um guião de ajuda para melhor entendermos cada uma delas:



Um "anjo" observa uma atleta que faz jogging atravessando a baixa da cidade e lança-lhe um apalpão no rabo quando ela pára para atravessar na passadeira. Ela assusta-se, olha-o e sorri-lhe. Depois ele está dentro de um elevador e intervém no fecho da porta para deixar entrar a mulher, que volta a sorrir. A porta fecha-se de seguida e quando se volta a abrir ela ajeita o cabelo enquanto esvoaçam por todo o lado as penas das asas do "anjo", havendo um olhar cúmplice dele sobre ela. Abre-se mais uma porta e é o "anjo" que entra na sua própria casa, sendo recebido com um beijo nos lábios pela companheira que trás uma bebé ao colo (legenda: "Ainda acredita que os anjos não têm sexo?"). Ouve-se a voz de um miúdo a chamar pelo pai. O miúdo aparece e salta para o colo do "anjo", beijando-o na face e abraçando-o. Todos demonstram felicidade (legenda: "Faça o teste VIH/sida").



Um homem de tronco nu faz a barba defronte ao espelho. Já barbeado e de camisa posta acerta o nó da gravata. Deixa uma anotação num bilhete da porta do frigorífico. No quarto de dormir puxa o lençol sobre as costas destapadas de um outro homem, o seu companheiro. Olha para trás, ao sair do quarto, com um sorriso de cumplicidade. Já no escritório recebe o correio das mãos de uma funcionária que quase nem se vê. Em casa, na cozinha, aparece agora o segundo homem já com uma camisola de alças vestida e as calças de pijama, com ar de quem acabou de se levantar. Vai ao frigorífico e ao fechar a porta vê o bilhete onde o primeiro homem tinha feito uma anotação. Pega nele e lê "Frutas / Leite / Ovos / Tostas / Preservativos". Depois aparece sozinho numa lavandaria, onde vai pôr roupa a lavar. No escritório, o primeiro homem está ao telefone. Depois vê-se o segundo de novo sozinho, no supermercado, com um carrinho de compras. Volta-se ao primeiro, que já está com a gabardina vestida e em direcção à porta da rua, acenando um simples adeus ao sair do escritório. No supermercado vê-se a mão do segundo homem a retirar da estante a embalagem de preservativos que vai comprar. Entretanto o primeiro homem já regressou a casa e está a cozinhar. O segundo aparece-lhe por detrás e coloca-lhe as mãos sobre os seus olhos, como se fosse para adivinhar quem chegava. O primeiro volta-se para o outro e os seus olhares encontram-se, encostando as faces com ternura. Ouve-se uma voz em off que diz que "A prevenção faz parte da rotina do Francisco e do Pedro" (entretanto o saco de papel do supermercado tomba sobre o balcão da cozinha e dele solta-se a embalagem de preservativos que tinha sido comprada). A voz acrescenta "E da sua?", surgindo ainda a legenda "Use preservativo!".

Perguntamos então: neste segundo filme faria sentido substituir o Francisco e o Pedro por um casal heterossexual? Sem sinais de infidelidade (não os encontrámos neste filme) faria ainda assim sentido sugerir o uso de preservativo? É que o preservativo só se utiliza quando nos apetece ou quando é preciso. E nenhum elemento do casal (heterossexual ou homossexual) necessita de usar preservativo. Basta que seja monogâmico, fiel e honesto... Que ambos o sejam. Não é pouco, bem sabemos, mas é o que é estritamente necessário. Ora, como o filme do Francisco e do Pedro não tem nenhum ingrediente "malvado", por muito bonito que seja e por muito contentes que nos faça, peca claramente por mostrar um retrato incorrecto de uma relação sexual estável entre dois homens, o seu guião é censurável por criar e acentuar uma visão "pecaminosa" da homossexualidade, por atingir (seja por maniqueísmo ou sem intenção) quem melhor se reveria nesse retrato e que (sem razão) se sente desconfortável com ele: as pessoas como nós, que têm uma relação monogâmica, fiel, honesta e estável!...
O assunto foi recentemente tratado neste blogue, com intervenções institucionais adequadas fora dele, sem que tenha havido o envolvimento e a reflexão que se esperava. Descobrimos uma excepção, num outro blogue para onde apontamos através do título deste texto, cuja leitura recomendamos.

2 comentários:

Paulo Morgado disse...

Pois a convicção de imunidade pela presunção de monogamia e fidelidade do parceiro é precisamente a maior causa de infecção actualmente em Portugal... Homo ou heterosexual. Basta ver quantas e quantas senhoras já além da meia-idade se encontram nas alas das consultas de infecto-contagiosas, infectadas com o VIH pelos maridos que o contrairam com prostitutas a quem pagaram mais para não terem de usar preservativo???

Luís disse...

Paulo, tem lógica o que dizes. Mas não a retira à minha abordagem. E o que está em causa é que o anúncio NÃO DÁ QUALQUER SINAL DE INFIDELIDADE!!! Se desse, não teria nada a objectar. Por isso considero que há (ainda que possa ser sem intenção) uma carga homofóbica na mensagem, que implicitamente diz que (mesmo que seja fiel e monogâmica) HOMOSSEXUALIDADE = SIDA. Metam a infidelidade no anúncio e passa a estar tudo bem. Deixem-na de fora (como o fizeram) e a mensagem passa a ser outra, com uma leitura muito negativa, apesar de todo o inegável encanto das imagens!!!... A acrescentar à polémica declaração sobre doadores de sangue homossexuais, este é mais um daqueles casos em que é vergonhoso que se ignore tal facto e que não entendo como quase mais ninguém levanta a voz!!!