Trans = além de, através, para trás, em troca de ou ao revés.No final da semana passada fui levado a assistir à apresentação do livro «Os Animais Antigos» de João Habitualmente, seguindo-se no mesmo local — o Teatro do Campo Alegre — um concerto dos Dead Combo. A originalidade e a ironia do discurso do poeta (mais acentuada na oralidade de fora dos livros do que na escrita apressadamente ouvida) justifica a dobrar que o autor seja revisto, relido, especialmente por quem aprecie mulheres mais que a poesia. Ou a poesia mais que as mulheres. Bom, adiante, não interessa!... Diga-se ademais que por detrás do seu diploma em Sociologia (ou será que é em Psicologia?), este João é de facto habitualmente um bom conversador, livre e libertador num discurso flectido e fluente que cativa e agrada. E sem qualquer ironia da nossa parte. Mas enquanto poeta, o João não me cativou ainda, antes me deixou a impressão de que tanto as suas aldeias como todo o seu restante universo justificam novas leituras, outros regressos. Senão veja-se em citação como ele vê «As Raparigas da Aldeia»:
Tenho sonhado às vezes
com as coradas raparigas da aldeia
trazem um leve cheiro à palha
e preenchem-me a necessidade
de mamas abundantes.
Convidam-me
mesmo quando olham para o chão
Tenho a impressão
de que fodem como animais antigos:
na lentidão de enormes carapaças
num fragor de pedras
cravando espinhos ao rebolar
Preferem a luz turva
do fim do dia
retornam ao povoado discretas
na companhia dos bois
e um botão a menos na blusa
Gosto das raparigas da aldeia.
Aos domingos de manhã
varrem o lar e dão lustro às panelas
de tarde andam em ranchos
dão gritinhos, fogem para o mato
Quem me dera pôr-me nelas!
Fizemos uma pausa para que a cena fosse refeita, e depois voltámos a entrar na sala. No estrado do palco entravam os Dead Combo (há no nosso título um link para eles), duo de guitarra e contrabaixo (ou piano, ou kazoo, ou melódica ou uma segunda guitarra), para um concerto. Tó Trips e Pedro V. Gonçalves surpreenderam-me, e não devo ter sido o único a sentir-me assim. Tó (na foto de cartola e tronco nu, no palco também de cartola mas infelizmente mais vestido) fez-me lembrar um verdadeiro rocker ao estilo norte-americano. A sua voz grave e cavernosa apresentava as músicas ao público antes de as começar a tocar, mantendo-se sempre de perfil para a plateia, numa presença forte, marcante e glamorosa. Diria que havia nele qualquer coisa de Prince, qualquer de Jimi Hendrix, de algo inatingível e fascinante. Até a forma como a guitarra era por ele espremida, violada, maltratada, mas com carinho, com amor, com entrega, com paixão. Dela saíam queixumes eléctricos que evocavam memórias de Lisboa, de Buenos Aires, se calhar de Sevilha ou mesmo de Nashville. Numa espécie de transfolk urbano, em diálogos constantes, Pedro (na foto, de óculos) correspondia plenamente aos desafios sonoros através da diversidade dos seus instrumentos. Apesar dos dois discos já editados, não sei se a companhia sonora dos Dead Combo seria a melhor para se ter por casa. Creio bem que não! Mas a sua música deliciar-me-ia uma vez mais, certamente, numa longa viagem a caminho de paisagens interiores. Como as dos poemas de João Habitualmente, que prefiro reler à minha maneira, como nesta minha transfiguração para «Os Rapazes da Aldeia»:
Tenho sonhado às vezes
com os corados rapazes da aldeia
trazem um leve cheiro à palha
e preenchem-me a necessidade
de carne abundante.
Convidam-me
mesmo quando olham para o chão
Tenho a impressão
de que fodem como animais antigos:
na lentidão de enormes carapaças
num fragor de pedras
cravando espinhos ao rebolar [pois, aqui é tudo igual!]
Preferem a luz turva
do fim do dia
retornam ao povoado discretos
na companhia das vacas
e um botão a menos na carcela [como soa bem, não soa?]
Gosto dos rapazes da aldeia.
Aos domingos de manhã
tomam banho e põem o fato
de tarde andam em ranchos
fazem-se machos, com machos no mato
Quem me dera pôr-me neles! [ó ai!]
As editoras, para que constem: os livros de João Habitualmente estão disponíveis na Objecto Cardíaco e os CDs dos Dead Combo na Dead & Company. Obrigado!
4 comentários:
tá boa a adaptação, ó luís :)
agora quanto aos dead combo... bom, o que o habitualmente tem de livre e libertador têm eles de pose feita, de pastiche de muitos outros (especialmente tom waits no caso do tó trips. já viste na capa do último disco deles? compara-a com a do small change do tom waits...).
mas pronto, a maior parte das pessoas com quem falei também gosotu deles. o problema parece ser meu, eh eh!
abraço
tiago
Tiago:
Eu espero que o autor e o editor não se sintam melindrados com a adaptação que fiz. Além de que eu poderia ter mudado mais, mas nunca foi minha intenção usurpar o texto que não é meu. Antes dizer em forma escrita a leitura que eu preferiria ou prefiro fazer do poema original. Nem sequer é uma versão, só mesmo uma leitura diferente...
Quando aos Dead Combo não discordo de que a sua pose é feita (mas bem feita). O Tom Waits não anda longe daquilo, não, mas com um som diferente também...
Abraço para ti, igual, e mais um agradecimento por me andares a (des)encaminhar para coisas destas!
adorei a adaptação : )
recebi seu recado. fico aguardando meu presente, muito obrigada! não era preciso me mandar nada, mas agradeço imensamente!
me deixou curiosa o nome "objecto cardíaco". é o nome de uma loja?
beijos
Não, Lucy, é uma editora de livros. Pode ver o seu site em www.objectocardiaco.pt e também o blogue que mantém através de um link no site da própria editora. Beijo (em breve voltamos ao contacto - privado no que respeita ao presente, ok?),
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