2006/06/06

ninguém... sabia

Soube do filme «Ninguém Sabe» a 30 de Março, por via de uma crítica no blogue Sound + Vision. Nela, Nuno Galopim dizia tratar-se de "um dos melhores filmes do ano até ao momento" o que, depois de tão longa espera pela estreia no Porto, vim a entender e em parte também a concordar...
Trata-se de (mais) um filme japonês, este baseado num caso verídico de uma invulgar família de mãe e quatro filhos. A história começa com a mudança de casa, a descarga do camião de transporte dos móveis, as pesadas malas que mãe e filho tomam nos braços escadas acima, com a máxima das atenções e todos os cuidados de coisa frágil. Logo depois tem a apresentação de Akira, o rapaz, entre vénias e sorrisos de conveniência, aos vizinhos que são também os senhorios. Na volta, o abrir das malas, uma a uma, cada qual com mais um filho, os dois mais novos, e depois uma rapariga mais crescida (Kyoko) que chega de comboio e entra também às escondidas na casa nova da mãe e dos seus três irmãos (Yuki, Shigeru e Akira). Numa das cenas seguintes é a vez de Keiko, a mãe, os instruir para que se comportem em silêncio e não sejam vistos por mais ninguém.
Todos os dias a mãe sai cedo para o trabalho e volta ao fim do dia, já tarde, com o jantar e algum dinheiro. O apartamento é simples e pequeno, mas mantém-se arrumado pelo filho mais velho. Também por isso o ajuda na aprendizagem das contas, num grosso livro de exercícios de aritmética. Um dia a mãe anuncia que terá que partir por alguns dias e que o será o rapaz mais velho a tomar conta da casa. E dos três irmãos. Deixa-lhe dinheiro para se governar e um inequívoco amor de mãe, ainda que possa parecer que não, que ali só há desprendimento. É verdade que nenhum dos miúdos foi ou vai à escola, embora esteja sempre presente esse desejo como a mais profunda das vontades. Eles são clandestinos naquele apartamento, mas também em termos sociais porque nunca foram perfilhados nem tiveram existência legal. Existiram e existem, apenas! Melhor, vão existindo... Algum tempo depois, a mãe volta a casa com presentes para todos. Mas logo adiante uma nova partida é anunciada e, desta vez, para mais longe e por um período maior que terminará o mais tardar pelo Natal. Promessa de Mãe!
Mas tal não acontece e, apesar dos meigos artifícios do irmão mais velho para fazer crer aos três restantes que a mãe lhes vai mandando lembranças, um dia toda a esperança se extingue sem que o reencontro aconteça. Daí em diante é um retrato de sobrevivência pura e dura que o realizador Hirokazu Koreeda descreve (porque, relembro, a história tem uma base real) e desenvolve, numa linguagem perturbadora que se vai aproximando de um hiper-realismo: primeiro é o fim do dinheiro, do gás, da luz, da água, depois é a senhoria que os procura para cobrar a renda em atraso, por fim é o fim dos segredos e o soltar-se para sobreviver no mundo...
Mas não termina aqui, este realismo que roça o sórdido sem nunca o ser: um dia adiante Yuki, a irmã mais pequena, tem um pequeno acidente doméstico — uma queda — e dele vem a morrer. Confrontado com uma inexistência legal (uma ilegal existência!) Akira, o irmão, pede a ajuda a uma amiga, Saki, para levarem a pequena dentro de uma mala, até ao local onde ela sempre desejou ir e nunca fora: o aeroporto. Tomam o metro e, à vista dos aviões ensurdecedores, abrem um buraco suficientemente grande para caber a mala que contém o corpo sem vida da menina. O primeiro pedaço de terra que atiram para a cobrir soa como se fosse terra a cair sobre um autêntico caixão. Depois regressam, dolorosamente silenciosos e sujos. À cidade e ao caos daquela família atípica... Dias depois, em aparente normalidade, um avião passa por eles a baixa altitude. Voltam as memórias do momento da despedida. As memórias da irmã perdida. As memórias da Mãe, talvez!
Mesmo que não fique entre os meus preferidos de sempre, «Ninguém Sabe» foi um filme que me tocou e que recomendo a curiosos que encontrem interesse perante a descrição que expus. São estes filmes, para mim, os que valem a pena. Mas tenho pena que a Adriana, que tão simpaticamente correspondeu ao meu desafio para o ver nesta última apresentação, ontem ao fim do dia na sala 3 dos cinemas Cidade do Porto, não tenha gostado. Desculpa-me, pois...
Uma nota final: Yûia Yagira (Akira, no filme) ganhou a Palma de Ouro para o melhor actor no Festival de Cinema de Cannes de 2004. E foi o mais jovem premiado de sempre!

4 comentários:

lucy disse...

eu adoro esse filme. posso dizer que é um dos filmes que mais me emocionou até hoje. saí do cinema arrasada, fisicamente exausta, achei de uma sensibilidade ímpar, de uma dor tão genuína... adoro histórias de crescimento, ainda mais quando têm poesia. são os meus filmes preferidos. a cena da mala sendo enterrada é uma das mais fortes que já vi. eu chorei muito, foi como uma lavagem da alma. adoro quando o cinema faz isso comigo.

gostei muito da sua sensibilidade também, ao descrever o filme. esse é um dos que eu não consegui dizer muitoa respeito. fiquei sem palavras.

beijos!

Anónimo disse...

Olá Lucy, obrigado pelo comentário pois eu precisava de ler algo assim. Eu não sou nada chorão mas - estranho - este ano senti "a lágrima" no canto do olho em dois filmes: 1º foi em «O Segredo de Brokeback Mountain» (ver minha entrada de 24 de Fevereiro); 2º foi agora em «Ninguém Sabe». Em ambos os casos havia algo em comum com a minha experiência pessoal e, no caso deste último, a lágrima voltou com a passagem do avião (o tal momento em que Akira terá recordado a irmã perdida e deixada junto do aeroporto). Beijo,

lucy disse...

também fiquei emocionadíssima com brokeback mountain. aquela cena das camisas guardadas juntas é literatura posta em imagens... eu adoro cinema, adoro!!!!!!

Anónimo disse...

PS - A cena é linda e inesperada, sim! Um dos melhores momentos do filme, também para mim.