2007/05/06

da lábia e dos narcisos

Uns lábios podem dizer-nos muito, ou simplesmente nada. Ainda que seja falso que o dito e a fala venham dos lábios (na verdade vêm é das cordas vocais), é para eles que olhamos quanto prestamos atenção a quem nos fala. Pelo menos se está à nossa frente. Às vezes, porém, é pelo telefone (fixo ou móvel) que a voz nos chega. E se nessas ocasiões não são uns lábios que temos à nossa frente, já a imaginação nos ajuda a compensar essa ausência. O que é difícil é ter a compensação do silêncio dos amigos, da família, dos que queremos por perto mesmo que seja só em voz e de vez em quando. Penso quanto é estranho que hoje as pessoas se refugiem em silêncios que se poderiam ultrapassar. Para o contrariar, eu ainda pego no telefone, à noite ou aos fins-de-semana, e ligo para umas quantas pessoas (cada vez menos) que quero ouvir. É uma facilidade sem custos adicionais, graças a um plano de preços que subscrevi ainda no tempo em que queria ter todo o tempo do mundo para falar com a minha mãe. A Mãe já cá não está hoje, nem nunca mais, mas o plano mantém-se e o tempo sobra-me. Falo com quem posso, com quem encontro, mas quase nunca alguém tem a iniciativa de falar comigo. Isto é: eu passo a vida a ligar a toda a gente e (quase) ninguém me liga, nem hoje, nem amanhã, nem depois... Haverá uma excepção ou outra, bem sei, e reconheço que o pouco que vou recebendo deve ser reconhecido. É nos outros casos que eu vou ficando cada vez mais distante de quem quero: primeiro porque não me apetece insisitir em conversas com quem já não me procura, depois porque quase sempre fico a pensar que uns quantos não se interessam muito mais por mim para além do mero facto de me terem conhecido ou de me conhecerem. E há os que se desfazem em simpatias e promessas, que nunca concretizam. Mas talvez bem piores sejam mesmo os que só têm lábia para celebrar a sua própria vida, ou aqueles que são tão extraordinariamente narcisistas que só se preocupam com os seus excessos egocentristas, com a celebração da sua existência excepcional, dos seus sucessos ampliados e desmedidos, ou ainda com as explosivas manifestações de afectos dos e para com os seus béu-béus ou miau-miaus... Que tenham dó dos simples e humanos mortais!

Imagem via GayFeed
Importado do blogue gayFEEL

1 comentário:

Anónimo disse...

(É estranho que ninguém se indigne; é estranho que ninguém me apoie...) Eu sei que este é um assunto delicado e volto ainda a ele porque hoje, ao telefone, percebi no amigo Tiago um pesar que - por coincidência - tinha a ver com o seu velho cão (...). Hoje, em Portugal, a "vida de cão" é bem mais do que era ainda há bem poucos anos. E, por outro lado, continuam muitos e muitos humanos, por cá e por esse mundo fora, com um nível de vida muito abaixo do de um animal de estimação. Os sentimentos do Tiago entendi e não os desdenho (ele sabe bem o que eu quero dizer). Mas continuo a sentir-me incomodado pela imposição da presença de um animal dentro de um lar para onde somos convidados e sobre tudo isto creio ainda que haverá matéria para se reflectir...